Como a arquitetura tem se beneficiado dos avanços promovidos pela neurociência



Tanto a arquitetura quanto a neurociência entendem a importância do ambiente na forma como os indivíduos agem e reagem. Os arquitetos, em sua essência, buscam pensar os espaços dentro das suas funcionalidades, da sua sinergia com o meio onde ele está inserido, e de forma a proporcionar o máximo de experiência ao seu usuário.

Com o desenvolvimento da neurociência, mais precisamente na década de 70, tanto a arquitetura quanto as demais áreas do conhecimento voltaram seu campo de atenção às incríveis descobertas sobre o funcionamento do sistema nervoso. Deste interesse mútuo surgiu o que conhecemos por neuroarquitetura.

Convidamos a neurocientista e incansável propagadora dos avanços da área, Dra Carla Tieppo, para nos explicar melhor de que forma tais estudos ajudam a compreender o comportamento humano. Esperamos com isso oferecer alguns insights para enriquecer seus próximos projetos, bem como ampliar sua compreensão sobre si mesmo. Confira:

Lorí Crízel – A partir de que momento a neurociência deixou de ser um campo de interesse dos estudiosos da fisiologia do organismo, e passou a interessar às demais áreas, como a arquitetura por exemplo?

Dra. Carla Tieppo – Antes dos anos 70, não existia a neurociência em si. Existiam vários pesquisadores em diferentes áreas estudando o funcionamento do sistema nervoso. Dentro da anatomia, da fisiologia, da clínica, isso conduzia para diferentes vertentes como a do neuroanatomista, neurofarmacologista, e assim por diante. A neurociência vem, a partir dos anos 70, promover um movimento que trouxe vários campos de estudo que tinham como foco entender o sistema nervoso. Lá nos Estados Unidos, a maior parte dos neurocientistas são psicólogos por formação. Os departamentos de psicologia já são denominados de Psicologia e Neurociência Aplicada nas principais universidades como Harvard e MIT. Tal movimento em torno das descobertas das pesquisas em diferentes áreas mostrou que para entender o funcionamento do cérebro eu dependo dessa multidisciplinaridade. Com a fundação da primeira associação internacional de neurociência – Society of Neuroscience, os profissionais que vieram a contribuir com os estudos passaram a levar os conhecimentos para suas áreas. Por exemplo, a inteligência artificial cresceu muito especialmente por conta dos estudos das redes neurais que foram descobertas dentro dos laboratórios de neurociência. Logo, a neurociência não é mais um estudo exclusivo da medicina há pelo menos 25 anos.

Lorí Crízel – Qual a importância da neurociência para a compreensão do ser humano e da forma como ele interage no ambiente que se encontra?

Dra. Carla Tieppo – A neurociência impactou várias áreas como a arquitetura, economia, psicologia, as engenharias, ao abordar diferentes aspectos do comportamento humano. Nesses lugares onde a psicologia navegou a neurociência passou a navegar, contribuindo com alguns insights que são diferentes a respeito da tangibilidade do funcionamento do próprio sistema nervoso e do jeito que ele reage a todos os estímulos que ele recebe. Ambientes são um dos estímulos mais importantes que existem para modelar o funcionamento do sistema nervoso, porque o tempo inteiro estamos nos espelhando no ambiente para adequar nosso comportamento. O ambiente é o elemento número um para a modelagem do nosso comportamento. Ao entrar no ambiente, ele vai acessar uma porção de circuitos que são tidos como adequados para aquele ambiente. E isso não é uma ação proposital do ser. Ele simplesmente age assim porque faz parte do funcionamento do sistema nervoso: compreender o ambiente onde ele está e adaptar-se a ele da melhor maneira possível. Seja esse ambiente físico, social ou estrutural, o sistema nervoso vai se balizar no ambiente para adaptar sua conduta. A arquitetura tem como premissa essa relação estabelecida entre os seres e a interação com seu meio, vendo como pode atuar ao promover o conforto, a proteção e as demais funções que as edificações possuem. A neurociência veio para mostrar que existem vários níveis hierárquicos desse processamento, e entender com que nível estamos conversando em dado momento.

Lorí Crízel – O que sabemos sobre a forma como o encéfalo lê os espaços e ambientes?

Dra Carla Tieppo – Desde sempre, desde toda evolução do sistema nervoso, os avanços foram no sentido de reagir ao meio onde o ser estava inserido. Começou como um efeito de reflexo. Ao observar um verme, um nematelminto, ele vai analisar o ambiente onde está para saber como reagir, lendo temperatura e o ambiente químico, se há algo que o agrida, por exemplo. A medida que os organismos vão evoluindo observa-se a construção mais elaborada de observação desse ambiente. De tal forma que o sistema emocional é o único que antecipa um valor importante daquele ambiente. O chamado instinto ou intuição é a leitura que fazemos tendo como base o sistema emocional. Esse feeling já vemos no sistema emocional, elaborado nos mamíferos em geral e bastante aprimorado nos seres humanos. Esse sistema funciona de forma a antecipar nossas reações. Ele é super importante para saber qual ambiente é desafiador ou recompensador.
O terceiro nível é onde se faz uma análise cognitiva deste ambiente, onde levo em consideração a bagagem pessoal. O design e a arquitetura estão atuando fortemente neste nível, onde a beleza, a estética e a arte são lidas como elaboração da evolução humana.
Se o ambiente for desagradável logo na primeira leitura, como por exemplo um ambiente sufocante, quente, o ser não conseguirá chegar ao terceiro nível de leitura cognitiva que irá ressaltar as belezas desse lugar adverso. Temos o sistema nervoso fazendo essa análise global em diferentes níveis de processamento e trazendo inputs para que o ser modele o seu comportamento.

Lorí Crízel – Em alguns momentos, principalmente na arquitetura comercial, os profissionais são convidados a elaborar ambientes focados no público masculino e/ou feminino, como é o caso de lojas, por exemplo. A neurociência conseguiu atribuir a diferença entre a forma de processar as informações no cérebro masculino e feminino? Eles funcionam de forma diferente?

Dra Carla Tieppo – Temos apontamentos de como os hormônios atuam no desenvolvimento cerebral, ainda na vida intra ulterina, e como eles farão algumas marcações no cérebro de maneira muito primitiva, como as primeiras leituras sobre se o ambiente é confortável, se está com luminosidade agradável. Neste nível há o processamento dessas áreas que vão modelar comportamento. Essa nova carga hormonal age novamente na adolescência, modelando uma nova forma de comportamento. Mas o que mais interfere na diferenciação entre gêneros está mais associado à cultura, e não a uma questão biológica. Essa diferenciação que se criou na forma como homens e mulheres pensam está mais ligada à forma como homens e mulheres são criados. Isso muda o modelo funcional do cérebro. Mulheres são educadas para reagir a visão curta, a buscarem proteção, e homens são mais empurrados para grandes ambientes, onde possam explorar. Não são diferenças biológicas mas sim culturais.
Países onde a diferença entre gêneros é menor, como os países nórdicos, essa diferença no comportamento de homens e mulheres quase não é notada.
A função principal do cérebro é a de ler o mundo, decifrar o mundo e aprender a reagir a esse mundo. Logo, temos que as mulheres são diferentes de homens porque durante o processo de desenvolvimento do feminino e do masculino isso é feito de uma forma onde o homem pode focar sua atenção, enquanto a mulher é obrigada a cuidar de muitas coisas ao mesmo tempo. Por isso que a loja masculina é mais direta na sua apresentação e a loja feminina mescla tantos itens e acessórios simultaneamente. Porque a mulher consegue administrar todos esses pontos focais e ainda tirar vantagem dele, por exemplo, olhar tudo ao mesmo tempo e resolver o que precisa com mais assertividade.

Lorí Crízel – Quais são os principais ganhos da neurociência até o presente momento?

Dra. Carla Tieppo – A neurociência ratificou avanços já conquistados pela psicologia, visto que várias correntes da psicologia levam em consideração os processos que acontecem no inconsciente. Existe um conjunto enorme de ações que não precisam da consciência para serem processadas. Ocorrem no inconsciente como processos mais automáticos. Por causa disso, somos balizados a modelos de comportamento tidos como hábitos, vícios, e que são adotados sem que tenhamos consciência disso. Boa parte das tomadas de decisões acontecem no campo do inconsciente.
O segundo grande ganho foi trazer de volta o sistema emocional para o lugar de destaque na construção do homo sapien. O sistema emocional se mostra como sendo a base estrutural do comportamento humano. Não é o que eu penso, nem o que eu acho que estimula o meu comportamento, mas sim o que eu sinto. Dentro da neurociência temos o autor Antônio Damásio, em sua obra, O erro de Descartes, onde ele questiona a máxima cartesiana do “penso logo existo” para defender o “sinto logo existo”. Com isso, temos o sistema emocional como um qualificador da vida para que, a partir dessa qualificação, possamos fazer as escolhas em nossa vida.
O terceiro ponto está na importância de como automatizar meu comportamento. Essas regiões do teleencéfalo regem o sistema de recompensas, que precisa ser compreendido de forma mais ampla, pois ele vai construir e moldar o comportamento.

Lorí Crízel – Quais são os principais desafios que a neurociência têm pela frente?

Dra Carla Tieppo – A grande fronteira sempre será descobrir como a consciência se estabelece. Esse é um ponto importante que seria a questão mais crucial a ser respondida. Como essa massa de neurônios, atuando em diversos circuitos podem resultar em um dado momento na consciência de si mesmo, que é o que nos qualifica como seres humanos. Temos uns bons insights como a capacidade de sequenciar eventos. Então começamos a compreender a passagem do tempo e essa passagem do tempo é uma forma de nos entendermos como vivos. Isso obviamente muda a concepção de existência. Essa é uma fronteira importante. A de entender o que produz a consciência. E é importante para tudo. Existe um átimo de tempo, cerca de 300 minisegundos, em que o cérebro toma decisões e a consciência não fica sabendo como ele tomou. Esse espaço cria um hiato de gestão do comportamento. Dar ao indivíduo uma boa condição para entender esse hiato vai mudar a forma como as pessoas se comportam.
Segunda questão importante é compreender a plasticidade cerebral para que tenhamos uma efetividade maior nas reabilitações das lesões, nas perdas funcional, nas demências. Esses são lugares onde precisamos evoluir para dar uma melhor qualidade de vida às pessoas.
E a terceira é utilizar a inteligência artificial para nos transformar em eternos. Provavelmente vamos conseguir transferir completamente a existência do indivíduo para uma rede neural artificial que nos trará a eternidade. Essa última fronteira resolve questões como a interface cérebro-máquina de forma integrada.

Carla Tieppo é doutora em Neurociência e pioneira na aplicação da ciência do cérebro em palestras, cursos e consultorias para diferentes segmentos empresariais. Há 24 anos é professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo onde ministra aulas de graduação e pós-graduação sobre o funcionamento do sistema nervoso e suas relações com a mente e o comportamento humano. Foi professora da graduação de Psicologia da PUC-SP.





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