Plantão psicológico e psicoterapia sartriana on-line durante a pandemia da covid-19



por Daniel Márcio Pereira Melo e Marivania Cristina Bocca

 

A grande crise (emergência) sanitária que o mundo está vivenciando nos últimos meses pelo terrível cenário imposto pela pandemia da Covid-19 vem impactando, de forma incessante e angustiante, os discursos, as emoções e as ações das pessoas. O mundo está em quarentena. As autoridades de saúde, entre elas a Organização Mundial da Saúde – OMS, orientam que não saiamos de nossas casas. Alertam para os danos físicos, sociais, econômicos e psíquicos que o coronavírus provoca. Alertam também para a alta taxa de letalidade entre as pessoas que fazem parte dos chamados grupos de risco (pessoas acima de 60 anos e pessoas com problemas de saúde pré-existentes). Porém, todos nós estamos sujeitos a nos infectar. Logo, muitas são as mudanças de atitudes que nos foram impostas pela pandemia.

Com a crescente evolução de pessoas infectadas pelo coronavírus no Brasil, fez-se necessário que a prática clínica psicológica também passasse por um processo de mudança. Para uma melhor contextualização acerca dessa mudança, façamos um retrospecto. Desde 2018, mais precisamente pela Resolução de número 11, de maio de 2018, o Conselho Federal de Psicologia – CFP – regulamentou a prestação de serviços psicológicos realizados por meio de tecnologias da informação e da comunicação, autorizando os psicólogos devidamente cadastrados no portal e-Psi para tal prática. Ocorre que, desde os primeiros casos confirmados de contaminação pelo coronavírus no Brasil, com o intuito de minimizar os impactos diante do sofrimento psícofísico-social e econômico causados pela pandemia, especialmente em virtude do isolamento, o CFP adotou temporariamente outro tipo de medida. A ação adotada pelo Conselho, durante a pandemia, visa facilitar o acesso aos atendimentos on-line.

Em nota, no dia 16 de março de 2020, o CFP comunicou:

Em função das recomendações do Ministério da Saúde, Organização Mundial de Saúde (OMS), Secretarias de Saúde e autoridades civis sobre eventuais possibilidades de quarentena, resguardo e isolamento a fim de evitar o alastramento da pandemia da Covid-19, o novo coronavírus, o Sistema Conselhos de Psicologia comunica à categoria que as(os) profissionais que optarem pela prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologia da informação e da comunicação, como o atendimento on-line, devem realizar o cadastro pelo site “Cadastro e-Psi” […]. Porém, temporariamente para os meses de março e abril, não será necessário aguardar a confirmação da plataforma para começar o trabalho remoto (CFP, 2020) (grifos dos autores).

Com essa medida, o CFP abriu a possibilidade para um maior número de psicólogos atenderem no formato on-line. Visivelmente isso repercute para além do número de atendimentos. Não são poucos os psicólogos, das mais diversas orientações teórico-metodológicas, que estão aderindo a esse tipo de atendimento. Incluindo aqueles que adotavam uma postura mais resistente a tal práxis. Todos, em seus mais diversos interesses, estão discutindo e justificando teoricamente essa ‘nova’ possibilidade de atuação clínica.

Diante disso, com esse texto, objetivamos apontar para os aspectos pertinentes à prestação de serviços psicológicos por meio das tecnologias de informação e comunicação, mais especificamente, por meio da modalidade do plantão psicológico e da psicoterapia  on-line. Os fundamentos teórico-metodológicos utilizados para isso são oriundos da psicologia fenomenológica sartriana. Apresentamos reflexões acerca das nossas experiências como psicoterapeutas atuantes com a modalidade de psicoterapia on-line no Brasil. Partimos da premissa do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1943/2005), de que a prática clínica psicológica não pode prescindir da história, pois é na história que a pessoa se faz a pessoa que é. Logo, não é pelo diagnóstico que se faz a psicoterapia numa perspectiva sartriana. Tampouco se faz clínica em psicologia pela perseguição de um modelo de tratamento. Em psicoterapia conta-se história e inventam-se estórias! Portanto, a clínica precisa retomar como premissa básica a narrativa da história. Essa narrativa se faz e se dá, única e exclusivamente, na dinâmica intersubjetiva que acontece entre o psicólogo e o cliente/paciente/pessoa em atendimento.

É na performance existente no encontro entre os dois personagens da cena do atendimento, nesse caso virtual, que encontramos o suficiente e o necessário para um atendimento psicológico clínico. Com isso não estamos declarando guerra ao diagnóstico, tampouco o desconsideramos. Todos os elementos historicamente defendidos na prática clínica, tais como: o diagnóstico, o tratamento, o sintoma e a técnica são importantes. No entanto, numa visão existencial-sartriana, o imprescindível é o histórico, o vecu (vivido). É ele que revela o projeto de ser de uma pessoa (SARTRE, 1943/2005).

Da prática do plantão psicológico e da psicoterapia on-line aos aspectos legais e éticos

Com o avanço da pandemia pela Covid-19 afetando direta e indiretamente as mais variadas áreas da vida do homem contemporâneo, muitas são as dúvidas que se revelam em forma de perguntas por parte de alguns psicólogos clínicos que nunca atuaram a partir da modalidade de atendimento on-line. As dúvidas são pertinentes e necessárias para o fazer dos profissionais que encaram essa nova práxis num momento tão emergencial como é este da pandemia que enfrentamos.

Diante de tais dúvidas, faz-se necessária a retomada de uma questão norteadora para a prática clínica on-line: Que serviços psicológicos estão autorizados pela Resolução – CFP, de 11 maio 2018? Revisitemos a própria resolução, que, em seu artigo 2o. esclarece: “São autorizadas a prestação dos seguintes serviços psicológicos realizados por meios tecnológicos da informação e comunicação, desde que não firam as disposições do Código de Ética Profissional da psicóloga e do psicólogo a esta Resolução”.

I – As consultas e/ou atendimentos psicológicos de diferentes tipos de maneira síncrona ou assíncrona; II – Os processos de Seleção de Pessoal; III – Utilização de instrumentos psicológicos devidamente regulamentados por resolução pertinente, sendo que os testes psicológicos devem ter parecer favorável do Sistema de Avaliação de Instrumentos Psicológicos (SATEPSI), com padronização e normatização específica para tal finalidade; IV – A supervisão técnica de serviços prestados por psicólogas e psicólogos nos mais diversos contextos de atuação” (CFP, 2018).

Ainda conforme a Resolução CFP nº 11/2018, independentemente da modalidade do serviço prestado, os profissionais de psicologia são obrigados a “[…] especificarem quais são os recursos tecnológicos utilizados para garantir o sigilo das informações e esclarecer o cliente sobre isso” (Resolução CFP nº 11, art. 2o, § 2o, 2018). Assim, podemos dizer que a norma evoca uma dimensão ética que precisa ser discutida no seio da modalidade de atendimento psicológico on-line. Tal discussão sobre essa dimensão ética precisa, por exemplo, alcançar o próprio processo de apropriação por parte do profissional dos aspectos éticos da sua práxis profissional. Questões básicas para a atuação clínica precisam ser retomadas e levadas em consideração para a prática com o plantão e/ou psicoterapia on-line: a escolha de uma abordagem; o compromisso com o sigilo; a formularização de um contrato terapêutico, entre outras. Assim, é importante que o profissional que pretende oferecer serviços clínicos na modalidade on-line se comprometa em compreender como a sua abordagem teórica específica trata o tema; entenda com clareza do que se trata o procedimento – de atendimento  psicológico  on-line; tenha claro os princípios necessários para um contrato neste tipo de modalidade.

Aspectos práticos para a configuração do atendimento psicológico on-line

A dinâmica do atendimento psicológico na modalidade on-line nos faz pensar sobre os elementos do processo, a saber: o lugar do psicólogo, o do cliente/paciente/pessoa em atendimento, a relação estabelecida, o lugar onde se dá o encontro on-line, o tempo do encontro e a conexão/desconexão. Objetivando uma proposta teórico-metodológica a partir da abordagem sartriana para uma práxis de atendimento psicológico on-line, utilizamos a expressão ‘enquadramento’ no sentido de configuração do nosso trabalho. Para tanto, abordamos dois tipos de enquadramentos, sendo eles: 1) situacional-relacional e 2) temporal. Com essa configuração, o psicólogo contribuirá para que a pessoa em atendimento possa entrar em processo de atendimento psicológico virtual, bem como para que haja o estabelecimento do vínculo entre elas. Vejamos:

1) Quanto ao enquadramento situacional-relacional, na prática de atendimento psicológico existencial-sartriano on-line, o psicólogo deve maximizar a consciência do cliente/paciente/pessoa em atendimento sobre a (nova) situação sócio-histórica, física/sanitária (do medo de adoecer e/ou morrer pelo coronavírus, da etiqueta respiratória até o isolamento) e econômica, bem como psicológica na qual se encontram.

O psicólogo anuncia o início do atendimento psicológico, seja ele na modalidade de plantão, seja na psicoterapia, que consiste numa configuração específica, qual seja, a configuração on-line (virtual). Tal esclarecimento deve ser feito apontando em que configuração e com qual qualidade de imagem, de som e de conexão o encontro está ocorrendo. Além dos elementos que compõem a configuração da tela (imagem, som, conexão e outros), faz-se necessário que ambos, psicólogo e cliente/paciente/pessoa em atendimento, mencionem em qual espaço físico/local (residência, consultório, local de trabalho, local público, automóvel ou outro) estão estabelecendo tal encontro/conexão on-line e se há outras pessoas nesses espaços/locais. Esses elementos são importantes e devem estar presentes no estabelecimento do contrato de trabalho objetivando que o encontro possa ser seguro e sigiloso. São eles, entre outros, os elementos que podem atravessar a experiência de presença nessa possibilidade de atendimento on-line. Interessa mencionar que outros princípios norteadores para o estabelecimento do contrato terapêutico na modalidade presencial também devem ser usados na modalidade on-line (virtual).

No momento do enquadramento, o psicólogo lança mão do movimento “progressivo-regressivo” (SARTRE, 1960/2002) constante durante um processo clínico via abordagem sartriana, partindo das próprias impressões do que se vê e/ou ouve na “tela da experiência” de seu cliente/paciente/pessoa em atendimento – chamamos de tela da experiência tudo o que chega do cliente/paciente ao terapeuta via dispositivo utilizado para a sessão. O psicólogo também deve voltar para si, como uma pessoa que está partilhando aquela experiência, apresentando as impressões sobre seus próprios sentimentos, bem como sobre como eles se mostram. Essa postura fará o cliente/paciente, aos poucos, também entrar nesse mesmo movimento e ritmo e doará os dados clínico-fenomenológicos necessários para o desvelamento da sua experiência e a construção do sentido do seu projeto de ser. Importa aqui destacar que é a compreensão sobre o projeto de ser o grande objetivo de uma investigação clínica sartriana (SARTRE, 1943/2005).

2) Quanto ao enquadramento temporal, esse será manejado por meio dos elementos factuais. Apontamos aqui ao menos quatro desses elementos: a) o tempo da sessão (que pode ser realizada por vídeo ou áudio); b) o tempo da conexão (já que agora, ao menos no Brasil, em tempos de isolamento domiciliar, as pessoas estão usando muito os meios de comunicação on-line, havendo uma sobrecarga na internet, que às vezes revela-se lenta ou desconecta); c) o tempo da escuta; d) o tempo da experiência. Tais elementos são apontados como necessários ao manejo do atendimento da experiência de temporalidade numa prática existencial-sartriana de atendimento on-line.

É importante discutirmos como a experiência de temporalidade e espacialidade estão sendo vivenciadas neste momento de pandemia com a quarentena imposta. Parece que há um agravamento dos quadros de ansiedade, depressão, fobias e transtornos psíquicos. Tais quadros não podem ser negligenciados e precisam ser, em espaço e momento oportunos, discutidos à luz dos dados empíricos e teóricos a que cada profissional tenha acesso. Por ora, é salutar indicarmos que o profissional tente identificar como tais quadros se manifestam ante a experiência de temporalidade e espacialidade vivenciada pela pessoa em quarentena e conduza o atendimento de modo a dar direcionamento a tais questões.

Vejamos cada um dos elementos que compõem o enquadramento temporal aqui proposto:

a) Quanto ao tempo da sessão: deverá ser combinado o tempo que o psicólogo tem disponível para o atendimento, bem como levar em consideração a necessidade/demanda do cliente/paciente/pessoa em atendimento. De modo geral, as sessões seguem o padrão de tempo usualmente praticado: entre cinquenta minutos a uma hora para cada sessão. É importante destacar que, por se tratar de um encontro virtual, a experiência de temporalidade é suportada de modo diferente por cada pessoa. Assim, sugere-se que o profissional tenha sensibilidade para perceber o que seria um tempo de sessão apropriado para ter com a pessoa que está em atendimento.

b) Quanto ao tempo da conexão por vezes se revela em sua fluidez, por vezes de maneira a rasgar ou transgredir o próprio contato estabelecido entre psicólogo e atendido, por exemplo, quando a conexão é interrompida. As consciências presentes em tal encontro, cliente/paciente e psicólogo, também precisam se posicionar sobre esse enquadramento O psicólogo, em nome da condução do processo, deve fazer uso de tal elemento como ferramenta de manejo terapêutico.

c) Quanto ao tempo de escuta se numa psicoterapia presencial, por vezes, entregamos o cliente à sua própria fala, manejando-a, por exemplo, com o sustento do silêncio (produtivo), numa sessão de psicoterapia on-line, a escuta precisa assumir uma dinâmica bem própria. Parece ser preferível, ao invés de deixar/abandonar o cliente a uma fala fluida, por vezes pausada e recheada de silêncios, fazer interrupções que presentifiquem o cliente e o psicólogo. O que queremos dizer é que, por se tratar de um encontro virtual, é arriscado “abandonar” a pessoa/cliente ao silêncio ante a sua própria fala, o que é extremamente exequível numa sessão presencial. Em uma sessão on-line, a quebra do silêncio é intencionada por duas razões: a primeira para que o cliente não se sinta “abandonado” diante da tela ou do telefone/computador e a segunda para o manejo e o controle de que a conexão do encontro não foi perdida. Nesse caso, usa-se a expressão “conexão” com sentido duplo: conexão da internet e conexão de contato. Essa discussão nos leva a um dos elementos mais relevantes num processo de psicoterapia fenomenológico-existencial: a experiência.

d) O tempo da experiência: é um dos elementos que devem compor o enquadramento temporal ao qual o psicólogo e o cliente se dedicarão. É à experiência, neste caso virtual, que ambos precisam se conectar. Nada, nessa experiência virtual, precisa ou pode ser deixado de lado. Afirmando isso, queremos enfatizar a proposta aqui defendida – a de que todos os elementos que possam surgir na experiência virtual estabelecida num encontro psicológico on-line, para ser existencial-sartriana, precisam ser levados em consideração quando do exercício da consciência posicional de si.

Diante do exposto, podemos afirmar que os pressupostos teórico-metodológicos do filósofo Jean-Paul Sartre – no âmbito de sua fenomenologia existencial, de sua psicanálise existencial e de seu método progressivo-regressivo – contribuíram na construção de um caminho metodológico para que hoje pudéssemos, como psicólogos clínicos, compreender os fenômenos psíquicos em atendimento psicológico on-line em tempos de pandemia pela Covid-19.

 


Referências bibliográficas

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução CFP Nº 11/2018. Dispõe sobre a prática e disponibilização de serviços on-line pelo psicólogo.

___. Nota. CFP 16 de março/ 2020. Dispõe sobre a autorização emergencial durante a pandemia da Covid-19 para disponibilização de seviços on-line pelos psicólogos.

SARTRE, J. P. Crítica da razão dialética: precedido por questões de método. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

____. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. 13. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.


 

Sobre os autores:

Daniel Márcio Pereira Melo: Psicólogo. Doutorando em Filosofia pela Universidade da Beira Interior – UBI (Portugal) com co-tutela na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (Brasil). Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR (Brasil). Especialista em Psicologia Hospitalar. Formação em Dinâmica de Grupo e Gestalt-Terapia. Psicoterapeuta Fenomenológico-Existencial. Analista Existencial Sartriano. Ex-docente do Curso em Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR (Brasil). Professor convidado da Escola de Saúde de Pós-Graduação da Universidade de Fortaleza – UNIFOR (Brasil). Diretor e membro fundador do Instituto Intentio de Psicologia Fenomenológica (Brasil). Contatos: Fone: (+351) 916 573 284. E- mail: [email protected].

Marivania Cristina Bocca: Psicóloga. Doutora em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Universidade do Oeste do Paraná – UNIOESTE, de Toledo/PR com co-tutela na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutorado sanduíche na UBI – Universidade Beira Interior – Covilhã/Portugal. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela PUC/RS. Especialista em Psicologia Fenomenológico-Existencial pela UNIPAR, de Umuarama/PR. Especialista em Psicologia Existencialista Sartriana pela UNISUL, de Florianópolis/SC. Contatos: Fone: (+55 45) 9 9973-0646. E- mail: [email protected].





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